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Member Reviews

A pergunta que me fiz ao terminar “De onde eles vêm”, a mais nova canetada de Jeferson Tenório, foi: “Como eu posso sequer tentar resenhar esta trama?”. E é com esta mesma pergunta que quero começar escrevendo aqui porque tenho total ciência de que não tenho habilidade para tal porque a sensação que tenho é que o que esta trama passa é muito mais do que somente a vida de Joaquim, protagonista da história, passando por temas de suma importância para jovens adultos que ainda não encontraram seu lugar em um mundo que não foi feito para pessoas de sua cor e não lhe dão oportunidade de tentar ascenderem. Você precisa entender que o lugar de onde Joaquim já começa é muito mais difícil do que outras pessoas, sendo preto, órfão e pobre, e as cotas universitárias pareciam um ótimo primeiro passo em um caminho que pode levá-lo a vida melhor no futuro.

Mas estamos falando aqui do começo das cotas, as quais eram vistas como problema e não como uma tentativa de proporcionar oportunidade para pessoas que justamente precisam delas, e a jornada de Joaquim vai ser muito, muito tortuosa, passando por relacionamentos e saúde mental, além de deixar claro e assinalar as desigualdades deste mundo que mudou pouco nestes 20 anos entre o tempo que a trama passa e o tempo atual, e usemos o próprio autor como exemplo: caso você não tenha morado no Brasil no último, o último livro do autor, ganhador do Jabuti, “O avesso da pele”, sofreu censura em diversos estados do nosso país (e você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI). Se no livro anterior Tenório nos levou em uma viagem sobre um relacionamento entre pai e filho com a cor tendo grande impactos na vida das personagens, aqui temos a juventude e as costas como cenário. Enfim, tudo isso foi pra falar que não me sinto capaz de considerar isso uma resenha porque o livro é realmente fora da curva de tão bom e quem já esteve nesta fase da vida vai se identificar em algum ponto com estas personagens, seja qual for em alguma passagem, mas não perca o foco e tente abrir seu coração e sua mente para o poder que as cotas podem (e devem!) ter.

Joaquim é apresentado como uma criança que via muito, apesar de não entender o mundo. Com uma mãe que trabalhava fora e ficando com seus vizinhos, uma passagem na qual o casal idoso tenta “comprar” seu desenho de um cavalo porque ele não entendia ainda o conceito de dinheiro e pagamento, mas tudo muda quando sua mãe precisava praticamente sair fugida do lugar, levando o pequeno com ele. A mulher morre quando ele tem 12 anos e o jovem fica morando com a avó materna, Joelma, e a tia Julietta, já como seu pai havia sumido, algo que ocorre com muitas famílias por todo nosso país. A avó de Joaquim é a típica matriarca de famílias brasileiras: cuidava de sua família e tinha gênio forte forjado em uma vida difícil que precisa de muita força e confiança de que as coisas vão melhorar para poder continuar lutando.

Aos 24 anos, o inicio da faculdade é protocolar com uma funcionária já tentando dificultar a vida do jovem (quem nunca sentiu que a burocracia é feita para nos fazer desistir de algo que temos direito?) e mesmo assim ele consegue se inscrever na faculdade de Letras. Disposto a se tornar um poeta, o amor aos livros mantêm a sanidade e a força de Joaquim em uma vida na qual ele não tem dinheiro para viver com calma: tem que se preocupar com comprar os medicamentos da avó que não são dados pelo SUS, com pagar as passagens de ônibus para a universidade, com ter dinheiro para um lanche – acho que vocês já entenderam que bem, precisamos de dinheiro para… tudo. E as oportunidades para alguém que não tem formação e ainda estuda, tomando parte do dia em horário comercial, se tornam mais escassas ainda.

Namorando Jéssica, que já tem uma filha de um relacionamento anterior, tudo que Joaquim realmente almeja é se tornar um poeta, se inscrevendo na matéria de Moacir Malta, uma disciplina de produção de texto ficcional. No dia da apresentação, na primeira aula, o jovem deixa claro o que quer e atrai levemente a atenção do professor, talvez não pelos motivos certos. E por mais que nós, os leitores, esperemos que a vida dele começa a dar certo e seguir para a frente com mais esperança, tudo para Joaquim para estar repleto de desafios perpetuados por uma visão de mundo que vai nos fazendo pensar mais e mais sobre as cotas e como elas precisavam de mais ajuda e não somente dar o acesso à faculdade. O relacionamento com Jéssica parece estar começando a esfriar enquanto ele se aproxima de uma colega chamada Elisa, branca, e confesso que também foi algo inesperado a forma como tudo foi se desenrolando no setor sentimental da vida dele.

Lauro, o amigo de infância, passa por uma descoberta e tentativa de se assumir gay em uma família que claramente não o aceita. Quando Joaquim passa a dormir na casa da mais nova namorada, é ele que ajuda Julieta com a mãe e avó do amigo. Personagem que apresentou um crescimento maravilhoso no livro, preciso apontar que se esta trama tem um problema é justamente a falta de informações e desfechos que queremos sobre os coadjuvantes, de tão maravilhosos que são, Lauro como exemplo e também a estudante Saharienne e a professora Berenice, trama que me tocou profundamente porque muitas vezes deixamos nos atingir por fragilidade nossa, sem entender que às vezes, a luta vale a pena sim (quando você ler, você entenderá).

O espiral de destruição que Joaquim vai passando se agrava com a demência de sua avó a levando a sofrer uma isquemia. O que já era difícil, se torna mais ainda porque ele e a tia não tem condições de internar a avó, então os cuidados com ela o levam a perder o fio de seu relacionamento, o qual começa a se desintegrar, o levando a perder a única coisa que realmente se agarrava. A partir dai, com a saúde mental já fragilizada e demonstrado isso em dias passagens bastante fortes anteriormente, Joaquim se entrega a bebida e vai perdendo contanto com o jovem que morava dentro dele, tão sonhador, que acreditava em ser poeta, esmagado pelo peso de uma realidade brutal e uma sensação de não pertencimento que o leva a beira do precipício.

Confesso que não esperava o final da trama da forma como foi, não pelo tom, mas pela grande ironia que nos apresenta, nos fazendo fechar o livro pensando que a vida não era daquela forma ali não, mas fazer companhia a Joaquim e a toda sua jornada foi algo deveras despertador para questionamentos que quem é privilegiado não faz e, muitas vezes, apontavam as cotas como sendo “injustas”, sem terem a menor ideia de que entrar na faculdade poderia apresentar desafios que sequer pensamos sobre: comida, roupa, materiais, transporte, livros, eventos sociais, tudo isso vem com uma cadeia de relacionamentos que precisa de dinheiro para se movimentar. Despertar para verdades como essa é um dom que Jeferson Tenório tem e sua escrita aqui é a mesma hipnotizadora do seu premiado livro anterior: capítulos curtos com parágrafos únicos que chegam como um soco, lembrando exatamente de onde aquelas pessoas vêm – e que elas merecem chegar onde quiserem.

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"De onde eles vêm", do Jefferson Tenório, é um livro tocante e cheio de camadas. A história fala sobre afetos, perdas e memórias, tudo isso com uma linguagem sensível que prende a gente desde o começo. Os personagens são muito humanos, e a forma como o autor constrói a narrativa – misturando tempos e vozes diferentes – nos faz entrar fundo no universo deles. É um livro que fala de dor, mas também de afeto, pertencimento e resistência.

Recomendo demais essa leitura. Jefferson Tenório consegue escrever com delicadeza sobre temas difíceis, como racismo, abandono e as ausências que atravessam tantas vidas. É um livro que faz a gente pensar e sentir ao mesmo tempo. Para quem gosta de histórias que mexem com a gente e ficam na cabeça depois da última página, vale muito a pena.

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De onde eles vêm, de Jeferson Tenorio,. é um livro singular, que provoca muitas reflexões.

O tema central do livro, as cotas raciais para ingresso nas universidades, traz outras implicações importantíssimas, que nem sempre são abordadas e levadas em consideração.
Há quem seja contra e quem seja a favor, mas isto não está em discussão.
O avanço que as cotas provocaram, desde sua criação, é inegável e indiscutível, embora há que se reconhecer que elas, sozinhas, não são capazes de corrigir desigualdades históricas, e isto não apenas para cotas raciais, mas também para população de baixa renda e PCDs.
O simples acesso a uma vaga na universidade não garante uma permanência igualitária. Outras questões que perpassam a vida dos cotistas podem fazer com que desistam no meio do caminho. A necessidade de conciliar estudos e trabalho, a dificuldade de acesso a livros, transporte, e tantas outras demandas cotidianas podem ser empecilhos muitas vezes intransponíveis, aliados, é claro, ao racismo que assombra a vida destes jovens, cotidianamente.

Joaquim, o protagonista da história, tem 24 anos, vive com sua avó, está desempregado, e acaba de ingressar no curso de Letras. Ele mora em Alvorada, uma cidade vizinha de Porto Alegre, e ambos têm como renda a aposentadoria da avó, que está em processo inicial de senilidade, necessitando de cuidados.

Joaquim não é perfeito. Corajosamente o autor construiu um personagem que comete erros, que fraqueja, que têm medos e inseguranças. Ele não é um herói inabalável. É um rapaz talentoso e inteligente, sim, mas não infalível.
Sua jornada é repleta de percalços, avanços e retrocessos, assim como a de muitos outros jovens. Vamos acompanhar sua vida acadêmica, amorosa e familiar e muitas vezes querer sacudir Joaquim para que ele levante a cabeça e não desista.
Preciso registrar meu carinho por uma personagem incrível que poderia ter sido melhor desenvolvida, sua colega Saharienne.

Gostei bastante da leitura, embora tenha achado o final um tanto irreal, uma exceção à regra.

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Jeferson Tenório, autor de "O avesso da Pele" ( livro que foi vítima de tentativa de censura recentemente), volta com força total com essa nova obra.
Em "De onde eles vêm", a narrativa se torna ainda mais marcante em termos de impacto. Isso porque o ponto central vem mostrar o início das cotas raciais em universidades. Aqui, o assunto se alia aos temas mais amplos que versam sobre preconceito e desigualdade.
Nosso protagonista, Joaquim, é negro e ingressa em uma universidade no início dos anos 2000. Oriundo de uma família pobre, vive com a avó idosa que necessita de cuidados. Como o curso de Joaquim é no período matutino, a conciliação com um emprego se torna praticamente impossível.
Com uma narrativa muito fluída, o autor mostra o amor de Joaquim pela literatura, e a tristeza de não poder levar o sonho de estudar e ser escritor adiante em sua juventude.
A questão discriminatória é muito visível nas situações que Joaquim vivencia, fazendo com que o leitor sinta toda a revolta vivida pelo personagem. As questões de religiosidade e pertencimento são também muito bem colocadas, de tal forma que nos leva a grandes reflexões. Uma obra, em resumo, extremamente impactante e necessária.

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Agradeço ao NetGalley por ter a oportunidade de ler esse livro antes do lançamento. O Avesso da Pele tem um lugar único nas minhas memórias de leituras e ter acesso de forma antecipada a essa obra foi uma felicidade enorme.

Acredito que em De onde eles vêm, o Jeferson consolida elementos da narrativa que tanto marcaram O Avesso da Pele. A presença da literatura em si no enredo, por exemplo, é um desses elementos que se repete e que muito me agrada. De alguma forma, ler sobre livros e literatura em ficção deixa mais próximo do enredo. Sem falar que a própria academia/universidade é um ponto central, já que a maior parte dos desenlaces e das interações do livro acontecem em razão do personagem principal, Joaquim, entrar no ensino superior através do sistema de cotas. Por falar em interações, senti que os personagens do livro são mais desenvolvidos e que refletem mais emoções.

A ancestralidade é outro ponto onipresente e central pra entender o desenvolvimento do personagem principal. É a linha que segura a dialética da narrativa. Assim como em O Avesso da Pele, denuncia-se o racismo pela narrativa de questões sociais quotidianas e pela alteridade.

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