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“A pele em flor” foi meu primeiro contato com a escrita de Vinícius Neves Mariano, o terceiro livro do autor, temos o seu primeiro na Alfagara. Quando a oportunidade de ler o livro e conversar com o autor surgiu, não hesitei depois de ler a sinopse porque imaginei saber o que me esperava, mas não fui capaz de prever a profundidade o que este livro com 6 contos trazem – e que boa surpresa foi esta que me chegou. Em algumas resenhas do ano passado, afirmei que a literatura nacional passa por uma fase incrível, com diversos autores que precisamos acompanhar, e Vinícius definitivamente faz parte desta leva. Todos os contos desta antologia trazem a cor da pele em seu centro, seja em seus personagens principais, seja a motivação para esconder o que estava acontecendo em seus relacionamentos amorosos ou familiares. A cor aqui importa, e importa de uma forma que te mostra que vai importar pra você também.

Quando comecei “Mal do Senhor”, não podia prever, de forma alguma, um conto tão simples e tão brutal, que iria diretamente ao ponto que tanto vemos no dia a dia ai fora: o racismo estrutural, a sociedade que nos ensinou qual o lugar que cada pessoa deve ocupar se baseando em seu tom de pele. O jovem homem protagonista neste conto – que você pode até pensar se tratar do próprio Vinícius – vai a um café bater papo e encontrar seu amigo também escritor – se você ler a sinopse completa deste livro já terá uma surpresa ao ler este conto – quando se deparam com uma cena ingrata, grotesca e cruel: uma mulher branca humilha a jovem preta que lhe serviu o café. Indignada com a troca do seu pedido, a mulher chega a ir embora pedindo que a moça seja demitida. Aquela cena faz o escritor falar o termo que dá titulo a este conto para o narrador. Confesso que não o conhecia, mas agora que o conheço, parece impossível fechar os olhos ao que aprendi.

Tudo neste conto é compassado, forte e direto, mostrando nuances e pensamentos que não são organicamente ensinados à todas pessoas terem assim que veem uma cena horrenda como aquela. A narrativa, sendo um conto, parece terminar no momento mais do que certo, com um tom alto que o acompanhou por todas as páginas. Logo depois temos “Subúrbio da solidão”, uma ode à religião e uma metáfora sobre os que vão e os que são tirados de nossas vidas, em uma narrativa repleta de pequenos momentos que deixam o leitor entregue ao que sente.

Mas foi em “Engenharia”, o maior conto do livro e que é dividido em partes, nove no total, que me peguei chorando com a história de um jovem engenheiro que irá encontrar a namorada por quem está profundamente apaixonado. Morando no interior, o leitor é enganado desde o começo, quando se espera que aconteça uma coisa e nos é entregue outra, nos levando a acompanhar a mudança do jovem para São Paulo. Formado em engenharia, algo aconteceu a ponto de o fazer se afastar de seu sonho de se tornar Engenheiro hidráulico de alguma grande construção e se jogar no trabalho com consultoria de estatísticas. Levado por essas ondas, em uma cidade para qual se mudou sem emprego e que parece não saber seu rumo, mas sua mãe, mulher forte e que realmente o preparou para a vida, sabe. Temos aqui um conto que começa sem pontuação, sem pausa, sem tempo para respirar, confuso, um verdadeiro conto sobre a cor da pele, sobre relacionamentos, sobre expectativas da faculdade, sobre relacionamento com os pais, sobre fracassar e suceder, tudo em uma única narrativa que faz todo o sentido no final – há!

“Ossos no quintal” também é dividido em partes, mas aqui para nos contar uma história sobre a escravidão e a forma como muitos segredos tentam ser empurrados para baixo do tapete com todas as forças. Me peguei odiando muitos personagens aqui, e acredito que qualquer um de vocês que lerem, também odiarão porque não podemos enterrar nosso passado: temos de ser melhores, precisamos germinar esta semente que fica conosco depois de ler algo tão potente quanto estes contos. Os nomes das personagens se repetem ao longo dos séculos justamente porque é uma história de tentar apagar e fazer com que esquecemos o nosso passado, mas não há como fazer isso, nem devemos.

“Fawohodie” é o conto mais poderoso de todos, com toda certeza. Confesso também, em minha ignorância, que não conhecia o termo usado para o titulo do conto, e foi lendo que o pesquisei e descobri que é um simbolo de liberdade ou independência e que reflete a responsabilidade que vem com (definição adaptada do inglês deste post, onde vocês podem ver o simbolo também). Ana Rita, a prima do protagonista Vinícius, preta retinta que parece ainda não se dar conta da forma como nossa sociedade é maquinada para fazer com que não vejamos como a meritocracia jamais será igualitária e não funcionará, me causou bastante revoltada em alguns momentos, refletindo falas que cansamos de ver ao longo de nossas vidas. Um conto capaz de entrar embaixo da sua pele e lhe mostrar as verdades mais cruas das quais você tente se esconder.

Como já deixei claro, Vinícius Neves Mariano é um autor para se ficar de olho. Também roteirista e já finalista do prêmio Jabuti, dono de uma voz potente e de uma escrita tão forte quanto sua voz, entrega um livro com contos necessários para você entender melhor a pele e a delicadeza que há nela, mas também uma força muito maior do que imaginamos. E se você se questiona sobre o sexto conto… bem, talvez ele seja um conto. Ou não. Seja como força, você precisa ler e entender o poder que há em chamar atenção para consciência social, nos lembrando que sempre podemos evoluir e um dia entenderemos que a pele tem poder.

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