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Fé no inferno

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Uma mescla de histórias do genocídio armênio a uma narrativa situada no Brasil contemporâneo para abordar com uma coragem incomum problemas de classe, etnia, gênero e orientação sexual.

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Já aprendi muitas coisas com livros de ficção, essa é uma das maravilhas de ser um leitor, afinal. Em “Fé no Inferno”, livro nacional escrito por Santiago Nazarian, por exemplo, eu aprendi sobre o Genocídio Armênio, o massacre de armênios cristãos pelo governo otomano durante a Primeira Guerra Mundial.

Cláudio, nosso personagem principal, é um jovem cuidador de idosos com um passado difícil, que em seu novo trabalho conhece seu Domingos, que talvez seja um sobrevivente desse massacre, ou pelo menos, é fascinado pela essa parte da história do seu povo, a verdade depende de quantos anos você acredite que ele tenha. Vamos nos educando junto com Cláudio, que como a maioria de nós, presumo, também não sabia nada sobre esses assassinatos em massa do século passado, e do mesmo jeito que nós vamos aprendendo com um livro, Cláudio também vai, lendo um relato de uma criança sobrevivente desse tempo sombrio, obra emprestada da biblioteca do seu Domingos.

Assim o livro se divide em dois: lemos a história de Cláudio, e a história que o próprio Cláudio está lendo. Quando o livro possui duas perspectivas, é sempre um bom sinal quando eu fico triste que o capítulo de uma tenha acabado, mas animada que o da outra perspectiva esteja começando e, felizmente, essa foi minha experiência lendo esse livro. Gosto como na narrativa ele retoma trechos, mas em outros contextos. É uma história sofisticamente construída, as duas partes dela bem entrelaçadas uma com a outra.

Uma coisa que eu sempre acabo prestando muita atenção em livros escritos em português são os diálogos. Nossa língua escrita é muito diferente da nossa língua falada, o que faz escrever diálogo realistas uma tarefa difícil. Mas nesse livro não houve nenhum momento em que estranhei a fala de um dos personagens, na verdade, o que me chamou a atenção foi justamente a naturalidade das conversas, principalmente quando se trata do Cláudio: o jeito que ele fala, sendo um jovem adulto de 22 anos, é exatamente como um jovem adulto de 22 anos tende a falar, e eu posso atestar a isso porque também sou uma jovem adulta de 22 anos. Outros personagens também possuem características um pouco mais marcantes na fala, e durante a leitura fiquei feliz em ver que nada soava forçado. Eram apenas pessoas conversando. Parece uma coisa óbvia, algo que um livro sempre deveria fazer, mas não é essa a maioria dos casos, por isso é sempre bom destacar.

Minha ressalva com esse livro são mínimas. O autor tomou algumas decisões criativas estranhas durante a narrativa, nada demais, literalmente algumas frases e parágrafos soltos, mas que me tiraram completamente da história, e justamente por serem momentos “aleatórios”, digo, que não impactavam a história de qualquer maneira significativa, eu não consegui entender o porquê delas estarem ali. Por exemplo: em um momento em que estamos na narrativa da guerra, presumidamente escrita pelo seu Domingos, que nada sabe sobre cultura pop, ele cita que um soldado “caçava pokémons em seu Game Boy Color”. Tem também um parágrafo desconcertante sobre o que o menino fazia com uma cabra e a frase “Cláudio tateava como um autista com diarreia num banheiro sem papel higiênico”. Coisas que saltam aos olhos, esporadicamente, que eu ainda não entendi porque sobreviveram as sugestões do editor.

Mas voltando aos elogios: os personagens em “Fé no Inferno” são muito bem construídos. Amo Cláudio, amo seu Domingos. E esse é um livro sobre traumas, trauma de ser uma minoria, de ser um “carneiro” apenas, a mercê do que os outros podem fazer com você. É um livro sobre sobrevivência. Sobre se levantar para depois morrer outra vez, e se levantar de novo. É um livro cheio de dores, mas também sobre como sua vida pode ser boa, apesar de tudo isso.

Se você se interessa minimamente por história, essa leitura vale a pena. Se você gosta de ler sobre personagens complexos e realistas, essa leitura vale a pena. E se você gosta de boa literatura nacional, fico feliz em dizer, essa leitura vale muito a pena.

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